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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Viveiro (2020)

Atualizado: 20 de abr.

Direção: Lorcan Finnegan

Roteiro: Garret Shanley/Lorcan Finnegan (história)

Elenco principal: Jesse Eisenberg, Imogen Poots, Jonathan Aris, Senan Jennings, Eanna Hardwicke.

Disponível: Prime Video.

Jesse Eisenberg e Imogen Poots,

Em “Viveiro” Lorcan Finnegan lança mão de uma ficção científica/suspense alegórico que desperta atenção pelos subtextos e insinuações, apostando na construção de uma narrativa intrigante, envolvente e dependente de certa cumplicidade colaborativa do espectador para decifrar suas metáforas visuais e mensagens enigmáticas. Nesse sentido, o filme propõe uma ambientação claustrofóbica e artificialmente torturante, onde os protagonistas acabam inexoravelmente encurralados por forças superiores aparentemente inexplicáveis. O simpático casal Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots), interessados em comprar uma casa condizente com seus recursos, acabam inesperadamente visitando o empreendimento imobiliário Yonder, administrado pelo esquisito corretor Martin (Jonathan Aris) que prontamente os convence a adquirir uma unidade no recém-inaugurado conjunto residencial (não tão perto demais mas não tão longe o bastante), constituído de ruas, quarteirões e habitações replicadas, extremamente simétricas e alinhadas. De certo, o jovem casal não contava que esse condomínio de classe média curiosamente padronizado e acima de qualquer suspeita se tratava de um complexo cativeiro labiríntico (vivarium) que os encerraria como cobaias de laboratório, proporcionando-lhes uma série de experiências bizarras e brutais. O roteiro de Garret Shanley possui uma riqueza inventiva que impulsiona, com uma transição suave e repentina de situações narrativas mais realistas e lógicas, inclusive,com certa descontração e irreverência, para uma imersão mais fantasiosa e surrealista provocante (durante um bom tempo de tela nos perguntamos se tudo aquilo não se trata de pesadelo ou alucinação). O texto da trama injeta uma série de elementos e motivos novos que buscam manter o interesse do público na possibilidade de superação daquele estado de coisas absurdo e supostamente irreversível experimentados por Tom e Gemma, embora desconfiemos dos comportamentos e atitudes do jovem casal que em determinado momento, parecem bem conformados com o absurdo e o enclausuramento forçado (há uma omissão, proposital ou não, no fato de os protagonistas não aludirem a suas vidas pregressas e relações sociais, levantando ainda mais nossas suspeitas acerca da fidedignidade de tudo aquilo). A proposta do roteiro em segurar o mistério, suscitar dúvidas e intrigar o público prolonga-se praticamente até o último ato, onde uma possível explicação subordinada a uma ficção científica alienígena ganha corpo, mas não tão óbvia demais, o que chama ainda mais nossa atenção para essa engenharia inteligente da trama. Uma experiência tão precoce, chocante e intensa na vida do desafortunado casal, presos no “viveiro”, resulta numa imersão lenta e até certo ponto irrefletida na rotina que ambos acabam criando no lugar (Tom fica obcecado em cavar um buraco no quintal para supostamente escapar do lugar e Gemma vai se ocupando de cuidar de uma criança insólita que se desenvolve em ritmo acelerado). À medida que o enredo avança, os protagonistas sofrem transformações bruscas em suas personalidades e comportamentos, inevitavelmente gerando conflitos de convivência e relacionamento.

Tom (Jesse Eisenberg) sobre o telhado da casa no conjunto residencial "Yonder"

O personagem de Jesse Eisenberg parece não apresentar tantos desafios dramáticos, no entanto, o ator transita satisfatoriamente entre um sujeito descontraído e carinhoso, com um jeitão simples e pacato, descambando depois para um comportamento irritadiço, taciturno, frio e até violento. Já para Imogen Poots o texto de “Viveiro” delega um papel mais intenso e versátil, haja vista a desenvoltura performática exigida em distintos momentos dramáticos do longa. A atriz vive uma professora do jardim de infância toda irradiante, descolada e proativa que acaba tomada pelo desânimo, apatia e pela imersão súbita nas tarefas domésticas e nos cuidados de “The Boy” (Senan Jennings), um garotinho incomum e propenso a imitar tudo de forma irritante. Mesmo evitando estabelecer vínculos afetivos com o menino, Gemma quase sem perceber, meio que no automático, presta-se ao papel de mãe, ditando regras, alimentando, dando banho, ensinando-lhe sons e palavras. Senan Jennigs que encarna o mecanizado, robótico e esteticamente padronizado “The Boy” impressiona pelo comedimento expressivo, comportamento bizarro e repetitivo, proporcionando momentos enervantes de instabilidade e desiquilíbrio psicológico ao casal. A direção de Finnegan investe numa encenação meio perscrutadora e surrealista que se avoluma num ritmo leniente, criando um suspense misterioso que evoca, por sua vez, a fantasia e a ficção científica (nota-se uma mise en scene que enquadra elementos sugestivos em torno dos personagens, seja a perfeição irreal da arquitetura do local ou a disposição melindrosa dos objetos do design de produção dentro e fora da casa). A fotografia do filme reforça a atmosfera claustrofóbica, sombria e desesperançosa de dentro do “viveiro” tanto pelo uso de uma paleta mais fria, predominantemente azulada, quanto pela abordagem intimista um tanto constrangedora e indigesta do convívio forçado naquela “pseudo família”. Da mesma forma, o design de som minimalista e sugestivo aguça a tensão e o suspense, assim como a montagem parcimoniosa imprime um ritmo complacente e dispendioso, colaborando para aquela sensação de permanência prolongada dos protagonistas no lugar (apesar da passagem do tempo dentro da trama ser relativamente curta). No que diz respeito à alegoria semântica “Viveiro” parece remeter a ideia de rapto e subjugação levada a cabo por uma força sobre-humana (certamente alienígena) quando se associa, primeiro, as cenas iniciais (que mostram um pássaro maior, recém-nascido, tomando o ninho de outra espécie menor e sendo alimentado pela “mãe” dos passarinhos mortos) aos eventos vividos por Tom e Gemma, ou seja, humanos que estariam sendo submetidos à outra espécie mais poderosa e inteligente que tomaram (ou estariam tomando) o planeta, fazendo os protagonistas sustentarem e criarem uma criatura que reproduziria o ciclo de manutenção dessa dominação. Algumas evidências do filme ancoram essa perspectiva, já que no último ato, constatamos que o azarado casal estaria preso numa realidade alternativa, espécie de plano hermético, uma vez que Gemma ao perseguir o “The Boy” adulto consegue “transpassar” brevemente outras realidades paralelas, evidenciando que outros casais também estariam cativos como eles, certamente perpetuando a criação de outras criaturas como o garotinho. Além do mais, o próprio “The Boy” ao tentar demonstrar por meio de imitações, as características da pessoa ou do ser com quem se encontrava (o garoto adquiriu um livro estranho, cheio de imagens e símbolos que eram reproduzidos na tv da sala), acaba revelando uma identidade monstruosa. A substituição de um corretor por outro, como uma proposta de revitalização cíclica de um processo de dominação (The Boy adulto por Martin velho), ao final do filme, também corrobora essa tese da subjugação de uma raça mais fraca e vulnerável, por outra, mais forte e predadora. Já de um ponto de vista talvez não tão evidente, mais “subterrâneo”, a produção de Finnegan propõe uma crítica mordaz e impiedosa ao sistema de reprodução social, baseado na instituição familiar de classe média. A trama inspira reflexões sinistras acerca da perda de liberdade e autonomia, e do sacrifício pessoal que representam a construção e perpetuação do núcleo familiar burguês. Tom e Gemma teriam suas vidas anuladas devido à manutenção do lar, a criação e educação do filho (que estaria longe de ser a ideal) e o comprometimento físico e psicológico com um modelo de vida que os consumiria através de um trabalho exaustivo e alienante. É como se uma força cultural e moral coletivas movesse a sociedade para que ela se perpetuasse, indo além das vontades e escolhas conscientes dos indivíduos. O filho ilegítimo (The Boy), ícone do mercado imobiliário, intermediário da realização do sonho do lar, poderia simbolizar o aviltamento perpetrado pelo sistema social que insiste em se reproduzir, ceifando a autonomia, a verdadeira felicidade, os anseios e liberdades, num curto espaço de tempo em que a vida se esvai ralo abaixo. O filme de Lorcan Finnegan exige uma experiência cinematográfica proativa do público, com seu esforço criativo de roteiro e direção para promover mistério e incitar reflexões. Muitos acharão a proposta pretensiosa ou enfadonha, mas terão de admitir seu ímpeto narrativo ousado e original.


Por: Ábine Fernando Silva

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