Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco principal: Stuntman Mike (Kurt Russel), Zoe Bel, Tracie Thoms (Kim), Rosario Dawson (Abernathy), Mary Elizabeth Winstead (Lee), Vanessa Ferlito (Arlene), Sydney Tamiia Poitier (Jungle Julia), Jordan Ladd (Shanna), Rose McGowan (Pam).
Homenagem nostálgica aos slasher’s e aos road-movies de perseguição da década de 1970, produções inclinadas à violência pujante e ao apelo sexual, “À Prova de Morte” insere-se no projeto Grindhouse (feito em parceria com Robert Rodriguez) e mais uma vez, ratifica a capacidade artística de Tarantino de revisitar seu leque de opções cinéfilas heterogêneas e ecléticas, imprimindo com sensibilidade irreverente sua marca pessoal criativa inconfundível que mistura gêneros cinematográficos diversos, explora com veemência situações dramáticas com diálogos inteligentes, escolhe a dedo uma trilha sonora hipnotizante e oportuna, além de investir é claro, numa violência gráfica bem peculiar e insana. Desta forma somos lançados para dentro de uma trama que num primeiro momento se vale de uma linguagem visual cuja textura emula a exibição de filmes em rolos, evidenciando intencionalmente sutis falhas de continuidade, granulações de imagem, descompassos sonoros, descoloração, etc., remetendo a uma atmosfera fílmica mais nostálgica (própria dos cinemas antigos ou drive-in que exibiam filmes B), mas que não ofusca o tratamento moderno dos temas do enredo, constituindo-se uma metalinguagem reelaborada que atinge uma robustez e um grau de excelência que vai muito além daquelas próprias obras que referencia. “À Prova de Morte” narra ironicamente a história de um psicopata que de caçador, torna-se caça, alheio e tão seguro de si mesmo ao ignorar que o universo feminino, tão subjugado e desprezado por seu machismo misógino, fosse capaz de produzir um ímpeto psicótico e sádico que no filme que empodera as mulheres, funciona como resistência legítima e vingança contra toda série de violências físicas e psicológicas historicamente experimentadas. O roteiro, dividido em duas partes, decide de maneira geral, conceber a implacabilidade extrema do assassino na primeira parte (representado, sobretudo, pelo seu possante de presença aterradora), para depois enquadrá-lo numa perspectiva de vulnerabilidade, invertendo os papéis e expectativas. Tarantino mergulha suas personagens em intensas interações discursivas, que revelam visões de mundo e personalidades, tentando aproximá-las do público, embora arraste demasiadamente a primeira metade da trama, gastando um tempo considerável com a retratação dos dilemas de um grupo de garotas cuja existência logo será descartada (o fato é que tal artifício funciona como isca para nos enganar, já que muitas expectativas acabam sendo construídas em torno destas jovens). Da mesma forma, Stuntman Mike, personagem vivido pelo icônico Kurt Russel com uma áurea de Snake Plissken do John Carpenter, assassino que trabalha de dublê pilotando o possante Chevy Nova preto (com um simbólico patinho no bico do capô) e que o utiliza como instrumento de sua carnificina, tem sua identidade e personalidade reveladas sem mistérios, numa abordagem irônica que não deixa de conferir certa simpatia ao personagem que conhece o ambiente frequentado por suas próximas vítimas, comporta-se de modo nada discreto e interage sarcasticamente com elas, especialmente com Arlene (Vanessa Ferlito) de quem ganha uma dança sensual, no ritmo da estonteante canção “Down In Mexico, The Coasters”, numa cena muito bem coreografada e dirigida.
O filme consegue com fluência trazer para o interior de seu enredo outros gêneros cinematográficos, redimensionando-os e encaixando-os aos propósitos narrativos. Da comédia sórdida, trágica, passando pelo suspense, terror trash ao road-movie de perseguição frenética, “À Prova de Morte” toca em temas como liberdade e autonomia sexual feminina, sensualidade, machismo misógino, feminicídio, fetiche do automóvel, sadismo, resistência, feminismo, etc. A direção tem convicção em sua estratégia de explorar a intimidade dos personagens, em “desvendá-los” em seus detalhes físicos e psicológicos. Desta forma, o próprio vilão, sujeito grotesco, caricato e antiquado, chama atenção pelo anacronismo estético, comportamental e pelo jeitão intrusivo, falso galanteador e canastra que ofuscaria sua impotência sexual traduzida em seu ódio avassalador pelas garotas, punidas pelo único objeto que lhe dá potência e poder. Alguns planos-sequências com a câmera posicionada em ângulos indiscretos de curvas e partes íntimas do corpo feminino, para lá de evidenciados num figurino de peças curtas e vulgares, se por um lado remete à concepção sexista, voyeurista e sujeita à condenação desses corpos recorrentes nos slasher’s de época, por outro, destacam o protagonismo de mulheres seguras de si mesmas, autônomas, cujas atitudes e decisões individuais dispensam o julgamento alheio masculino ou os falsos moralismos. A mise-en-scene perscrutadora açambarca o ambiente e personagens interagindo, com planos médios que deslocam a câmera lentamente de um lado para o outro na horizontal, construindo conexões metalinguísticas discretas com os cenários (ou outros filmes do diretor), introduzindo em diálogos expositivos, referências a outras obras que glorificam a cultura cinéfila de Tarantino e que funcionam como artifício de auto-promoção de seu próprio filme. A construção de uma ação frenética e alucinante de perseguição de carros é outro ponto forte da direção que dispensa os efeitos especiais computadorizados e no melhor estilo “à moda antiga” como “Mad Max" (1979) George Miller ou “Corrida Contra o Destino", (1971), Richard C. Sarafian reserva para o clímax do longa um verdadeiro “pega” de gato e rato entre as clássicas máquinas turbinadas “Chevy Nova” e “Dodge Challenger, 1970”, em sequências realistas de tirar o fôlego com batidas, derrapagens e capotamentos (tá na cara que o filme homenageia os dublês, profissão tão arriscada e ingrata na indústria cinematográfica). Ainda que a trama opte por um ritmo moroso e imersivo durante um bom tempo de tela, protelando a ação e o desfecho dos eventos, quando resolve chegar as “vias de fato”, ao que realmente “interessa”, extravasa sua proposta de tal forma que nos diverte e entusiasma com eficiência. É neste compasso que nos identificamos e torcemos sem reservas pelas amigas Kim (Tracie Thoms), Zoë Bell e Abernathy (Rosario Dawson), mulheres que desconstroem uma série de estereótipos machistas, por suas atitudes, vivências, personalidades e porque não prazeres incomuns (atração por uma adrenalina perigosa), tornando-se caçadoras implacáveis do psicopata que passa implorar por sua vida. Embora considerada pela crítica e pelo próprio Tarantino uma espécie de “patinho feio” no rol de suas badaladas obras, “À Prova de Morte” consegue promover de maneira inconfundível a marca autoral do seu diretor, comunicando com grandiloquência e criatividade sua paixão narcísica pelos road-movies de ação e pelos icônicos slashers sangrentos dos anos de 1970.
Por: Ábine Fernando Silva
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